Pecados
É possível (e justo) fazer uma interpretação ética partir de um discurso moral? Eu acho que sim, e é isso o que pretendo fazer sobre o tema dos pecados. Tenho em minha defesa o fato de que isso já foi feito antes, de diversos modos. Além das análises filosóficas e psicológicas da religião e demais instituições, a própria Bíblia pode ser um exemplo.
O Antigo Testamento é um livro moral, orienta um povo sobre sua história e seu destino, como surgiu e como deve se comportar. Vou eleger como ponto fundamental o episódio de Moisés. Ele assume o dever de guiar seu povo tanto ao longo do território geográfico quanto pela educação moral. Bane a adoração pagã e de imagens no mesmo instante em que traz as novas leis eu deverão pautar o novo comportamento, monoteísta. Os dez mandamentos são inegavelmente a nova moral que se impõe.
Mas o que eu vejo no Novo Testamento é uma retomada ética dessa moral. O mesmo Deus que trouxe o Decálogo e sua moral veio à Terra e reinterpretou aqueles mandamentos por meio da ética. Se a lista previa uma quantidade de proibições, o discurso das Boas Novas é o da inclusão. Ainda mais, embora o Antigo Testamento contenha várias passagens pregando a morte de povos politeístas e a destruição de seus templos, sem sequer poupar as mulheres, quando os homens se reúnem para apedrejar uma mulher adúltera qual é o ensinamento trazido? É o perdão. A condenação tende a ser uma atitude moral, o perdão é ético.
Ao perguntar, aos poderosos (e covardes) homens que cercavam a mulher adúltera, qual deles jamais havia pecado, Jesus retira as leis da ordem moral e as institui como fundamentos éticos, necessariamente balizados pelo perdão. Ainda que a mulher tivesse cometido o pior e mais imoral dos pecados, qualquer outro pecado fazia dos homens, perante Deus, pessoas iguais a ela. O Novo Testamento é o Livro do Perdão, esta é a ética cristã.
Não foi por acaso que a Igreja, como instituição politica, desenvolveu-se por séculos pregando sobre o Antigo Testamento, e, até hoje, tal o fazem as igrejas moralistas que não querem nem incluir nem libertar.
Desde o início da Idade Média, o outrora imoral Agostinho orientou a teologia cristã para uma interpretação da Escritura como se esta fosse uma alegoria. Sem poder, neste blog, entrar em toda essa complexidade, a proposta de um texto alegórico destitui o peso de uma interpretação guiada pela moral dos homens e conduz para o conhecimento sublime de Deus. Ao longo de séculos, ainda na flamejante Idade Média, a complexidade do pensamento filosófico foi avançando. Tivemos, por exemplo, São Bento e seu ensinamento para a retidão e o comportamento exemplar para inspirar e educar, uma boa ética.
Já no século XIII, em função de um renascimento urbano e filosófico, a Europa via as cidades retomarem sua vibração, as universidades se alastravam e os textos clássicos de Aristóteles e Platão, entre outros, reencontrados por meio da cultura islâmica, encantavam os estudiosos. Foi nesse contexto que Tomás de Aquino revolucionou o pensamento ocidental. Junto com outros filósofos e teólogos Tomás propôs que a Bíblia fosse lida literalmente, não alegoricamente. Deus teria certeza na inteligência humana de modo suficiente para ser claro nas palavras que inspirou.
Mas essa revisão teológica é inegavelmente ética. E tão ética é essa revisão que ameaçou o poder político e sua moral. Não fosse a persistência de seus amigos para escondê-lo, Tomás poderia ter sido assassinado.
A nova teologia ocorre nesse contexto em que a burguesia alcança poder financeiro e concorre com o poder político dos divinos nobres e clérigos e a Filosofia retoma a reflexão individual e se aprofunda na subjetividade. Estes são os pilares do que será chamado Ocidente e do Renascimento. Em mais um punhado de décadas o homem, com seu poder racional, seria declarado o centro do universo.
Graças a isso, a essa reflexão sobre a subjetividade, a crítica sobre a literalidade da Escritura e o fortalecimento do pensamento laico por meio das universidades, Lutero pode propor sua reforma, o que incluía, finalmente, a prioridade do Novo Testamento sobre o Antigo Testamento. Infelizmente, como o confronto teológico de Lutero contra Roma foi usado politicamente pela nobreza, a proposta ética de Lutero logo se perdeu em uma moral protestante germânica e saxônica.
Isso tudo, para justificar minha proposta inicial de que é possível (e justo) fazer uma interpretação ética partir de um discurso moral. Posso, portanto, comentar sobre os pecados (morais) de um ponto de vista ético. Vamos lá.
A ira talvez seja o pecado mais claro. É o desejo de destruir o outro que se interpõe frente aos meus desejos. Posso querer destruir os ouros por suas ideias, por seu poder ou por o que quer que eu possa fantasiar que exista para impedir a realização de minhas fantasias onipotentes. Eu projeto no outro a culpa de minha imperfeição e quero destruí-lo com toda a intensidade correspondente à minha dor de ser imperfeito.
A inveja é o pecado mais negado. É comum ver pessoas dizerem que não sentem inveja. Ou não compreendem do que se trata ou julgam-se mais do que santos. Inveja significa não (suportar) ver: in + veja. Não se trata de eu querer ter o que o outro também tem, é, na verdade, eu não suportar ver o que o outro tem ao ponto de eu querer destruir essa posse ou esse bem ou até eu querer destruir o outro completamente por não tolerar imaginar o prazer que ele desfruta.
A preguiça, talvez nos trópicos, é menos negada. Dificilmente existe alguém que nunca exclamou “que preguiça!”, mesmo que não seja discípulo de Macunaíma. No entanto, essa preguiça que se exclama está mais ligada ao cansaço. Estritamente dizendo, o pecado da preguiça é o descompromisso. É não se comprometer consigo, com o outro nem com a comunidade. É não fazer minha parte, á quando o outro não pode contar comigo e eu nem me importo com isso.
A luxúria reúne os prazeres da carne. Eu disse os prazeres? Errei. A luxúria reúne os vícios da carne. Mais usualmente associado à satisfação sexual, esse pecado engloba tudo o que é um desfrute material desmedido e egoísta. Levado pela luxúria eu deixo de me comprometer com a integridade ética e moral do outro, assim como desmereço o caráter sublime de tudo com o que me relaciono.
A avareza é mais do que uma contenção ou segurança. É a retenção. No caso de muitas pessoas, o desenvolvimento de uma neurose obsessiva carrega esse pegado de modo compulsivo. Note-se que o avaro não é simplesmente alguém que controla os gastos e retém dinheiro. O mal que o avaro se faz leva-o a guardar a riqueza e jamais desfrutar dela, para si mesmo ou na companhia de quem se gosta. E esse é um ponto característico, o avaro não consegue dar nada, nem mesmo afeto. O avaro não consegue abraçar, nem cumprimenta com um confortável aperto de mão por não suportar o conforto. A avareza me faz controlar tudo que é matéria e transformar em quantidade o que é imaterial, como o amor, o sorriso, a ternura. Eu não consigo ter, dar nem receber.
A gula é, obviamente, relacionada com alimentação compulsiva. Mas isso é muito pouco. A pessoa gulosa é devoradora em todos os sentidos. Quer sempre mais e mais, nunca se satisfaz. A gula me impede de sentir o sabor das coisas e da vida. A leitura é dinâmica, em diagonal, não é possível o contato estético íntimo e calmo leio para chegar ao final e concluir mais um livro, não para saborear a poética e a habilidade narrativa. Desse modo, vou me relacionar com o outro sempre buscando o que eu posso ganhar com isso, devorando o outro. Psicologicamente, a alimentação é o afeto que se recebe. A primeira experiência de afeto do ser humano tende a ser o leite do seio materno, alimento e afeto se unem indelevelmente como representação psíquica. Se a avareza não permite compartilhar, dar nem receber, a gula me impõe devorar tudo e todos na busca interminável de um afeto suave e acolhedor.
E a soberba. Essa palavra é regularmente usada de modo positivo. No sentido de algo muito bom, um desempenho de um ator pode ser soberbo, isto é, inigualável, acima de qualquer outro em qualidade. E o pecado é basicamente isso. A soberba é o orgulho, a arrogância, a altivez, aquilo que me faz sentir melhor do que os ouros, acima de todos. Do latim superbus, traz, por isso, também o significado, de insolente, presunçoso, vazio (vaidade, ver liderança ética 7). A soberba é um antônimo para humildade, pois quando eu penso pertencer às alturas eu deixo de ter os pés no chão, no húmus.
Note-se que os pecados são algo que faz mal primeiramente ao próprio indivíduo e por extensão ao outro, por isso trata-se de algo ético. O termo vem do latim pecatum, cujo elemento compositivo pec- dá o sentido de tropeçar, dar um passo em falso, enganar-se. Com isso posso pensar nas manifestações inconscientes que fazem com que eu “me engane” e nas minhas dificuldades de seguir um caminho com retidão. Todos os pecados devem ser compreendidos e analisados como atitudes voltadas contra si mesmo, pares, subordinados, parceiros e concorrentes.
Quem nunca viveu esses pecados que atire a primeira pedra. O exercício adequado da liderança ética pressupõe a competência de reconhecer meus pecados, já que todos temos, em alguma quantidade todos esses defeitos. A partir de então, posso tolerar os defeitos do outro.
Pecados vistos, eis, sobre os que pecam, a ética própria: inclusão e perdão. Se o exercício da liderança te atinge a face e a deixa inflamada, ardendo por vingança, existe o outro lado íntegro. Mostre a outra face.
P.S. Na semana que vem, as virtudes.
Disponível no site:http://www.crescentedh.com.br/pecados/#comment-1627
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